quinta-feira, janeiro 04, 2007

Bola de carne da Páscoa que um dia passou a ser também do Natal

A Avó já não faz esta bola. O tempo confundiu-lhe o cérebro, escangalhou-lhe a memória. Hoje vive fora do tempo, no entanto ainda varre, rega, é afável e brincalhona como foi, o seu sentido de humor e o seu sorriso não se esvaíram de todo. Só que aos oitenta e muitos anos vive fora do mundo e, como o mundo está, creio que é bom para ela ignorá-lo.

Anos antes de a memória lhe enfraquecer e começar a alterar a bola original, pedi-lhe a receita. A bola da Avó é esta que aqui está, com duas modificações minhas: as carnes são misturadas na massa e não intercaladas entre duas camadas de massa, e uso mais carne gorda do que a Avó usava, por entender que dá mais suculência à bola. Primeiro fazia-se só na Páscoa, depois estendeu-se também ao Natal. Esta fi-la no passado 23 de Dezembro.


O que levou a massa: 1 kg de farinha tipo 65 (é menos fina que a vulgar 55), 40 g de fermento de padeiro, sal, 12 ovos grandes (esta levou 13), 200 ml de azeite. Portanto, é uma massa bastante parecida à dos folares transmontanos, com a diferença de que não leva leite e de que se junta exclusivamente azeite, em vez de manteiga e azeite como o folar. É da Beira Alta bastante interior, abaixo de Trancoso, e faz-se em toda essa região.

Primeiro, fiz um isco com um pouco do kg de farinha e o fermento diluído em água mais que morna, um isco pastoso, com o "ponto" da massa para depois se misturar bem, "ponto" que se vê na imagem acima, à direita, e ainda melhor se verá clicando nela para ficar maior. Pus o isco à lareira, até dobrar de volume. Depois acrescentei-lhe a farinha, o sal, 12 ovos, e amassei bem. Como ainda estava um pouco espessa, acrescentei outro ovo. Tudo bem misturado e amassado (a massa ganha bolhas e separa-se facilmente dos dedos ou da peça de amassar sem se pegar como antes), tudo bem amassado, dizia, foi para junto da lareira até dobrar de volume.

Dobrado o volume, voltou à cozinha para lhe juntar os 200 ml de azeite e para ser amassada de novo, até absorver o azeite todo. Foi de novo para a lareira, até ter dobrado outra vez de volume e ficado com o belo aspecto da imagem acima.


Entretanto partira as carnes, febra da pá e carne da barriga sem coirato, como se vê, um kg e tal ao todo. Cortara em rodelas um salpicão de lombo, uma chouriça, cortara presunto em pedaços, tudo coisa escolhida, que só com boa matéria-prima se faz algo de jeito.

Levei ao lume, numa sertã grande, a carne de porco com sal, alho e um pouco de vinho branco, e aí cozeu, até o vinho se ter evaporado. Deixei arrefecê-la um pouco e misturei-lhe o presunto e os enchidos, cujas rodelas cortara ao meio. Logo a seguir incorporei as carnes na massa, a banha de as fritar e o molho que largaram, tudo bem misturado.

Untei com banha e enfarinhei a assadeira que se vê na imagem (30 x 33 x 7,5 cm), e aí dispus regularmente a massa. Com a ponta do dedo fui ocultando quanto pude a carne que aflorava. Levei-a de novo a bola para a lareira, já era noite alta, vê-se pela cavaca solitária e pelo borralho que as anteriores deixaram na imagem do topo.



Cozeu em forno previamente aquecido a 200ºC. Tal como um bolo, vi que estava cozida com um fuso de espetada. Retirei-a e passou a noite na mesa da cozinha, sobre a grelha do forno, para arrefecer como é devido (ar por todos os lados). Só no dia seguinte é que tirei as três últimas fotos e a provei. Estava como sempre. Óptima. A massa firme, friável, ao contrário das bolas que conheço. Bebida para a acompanhar? Chá. Chá preto bem feito, Darjeeling, Olong da Formosa, o que tiverem à mão, se um dia fizerem esta bola. Muito melhor que vinho. E se certa gente disser que sou um tosco - chá com bola de carne? Onde se viu! -, responderei que essa gente é snobe, no sentido original da palavra, que não será muito vulgar saber-se qual é. (1)


(1) "Snobe, s. Do ingl. snob, importado da gíria dos estudantes de Cambridge que designavam com este vocábulo (que também significava em ingl. ‘homem de baixo nascimento ou de baixa condição’, particularmente 'aprendiz de sapateiro') todos os que não frequentavam a Universidade, aproximando-se, portanto, da gíria coimbrã futrica". In Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado.

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16 Comments:

At 5/1/07 09:48, Blogger Fa said...

Esta bola devia estar deliciosa. Faz crescer água na boca logo pela manhã! Aliás, é ao pequeno almoço que muitas vezes me sabem melhor os doces e os salgados deste tipo. Gostei do pormenor do chá.

 
At 5/1/07 19:10, Blogger Justa said...

Fiquei encantada a lê-lo! Essa, ou uma muito parecida, é a bola que adoro e faço. Numa receita que vem da minha bisavó. Há também uma variante sem carnes.
O pormenor do chá: achava que era a única! A minha avó iniciou-me na combinação bola/ chá Gorreana e só assim me sabe bem.

 
At 6/1/07 14:55, Blogger Cristina said...

Esta sim, parece-me uma bola de carne a sério! Só poderei imaginar a delicia do tempero do azeite na massa, alternando com o salgado gostoso das carnes e enchidos. Sem palavras... isto é uma tortura para uma grávida.

 
At 7/1/07 11:08, Blogger Marisa Beato said...

!Qué bueno!
Ya estoy de vuelta en el blog, querido Kuka, y también quiero desearte un muy feliz año nuevo con muchos bicos.
O forno, es una maravillla, yo quiero uno.

 
At 7/1/07 19:52, Blogger avental said...

Sabe muito bem de manhã, parece-me que é quando sabe melhor, FA. Aguenta-se 4 ou 5 dias bastante bem. Pena ser trabalhosa (ando preguiçosíssimo).

 
At 7/1/07 20:02, Blogger avental said...

O chá liga mesmo bem com a bola, Justa :) São estas coisas boas que nos vão passando e que não devemos perder, senão às tantas estamos metidos a comer pizas & hambúrgueres, de resto quantos já não estarão e sempre cada vez mais, pois é para essa igualização por baixo que caminhamos.

 
At 7/1/07 20:10, Blogger avental said...

O azeite que tenho, de Foz Côa, tem uma sabor acentuado a azeitona, e então passou-o à bola.

Como por aqui se diz, não vá augar, Cristina. Tem aqui a receita direitinha, é só orientar a sua execução. Se não tiver batedeira de massas (a minha avariou-se), verá que o seu marido vai gostar do exercício de amassar e terá todo o gosto em satisfazer-lhe um daqueles apetites súbitos, se o vier a ter pela bola.

 
At 7/1/07 20:19, Blogger avental said...

E a ti, Marisa, además de desearte también un Año Bueno de 2007, espero que, ayer, los Reyes te hagan ofrecido un “forno” de estos :)

 
At 10/1/07 14:13, Blogger Paula said...

Belíssima bola! Receita anotada.

Tem mais destas? ;)

 
At 11/1/07 14:24, Blogger avental said...

É uma bola que aguenta bem uns 4-5 dias, mais é que não, Paula. Por isso é que a fiz na antevéspera de Natal e só 12 dias depois é que a mostrei ;)

 
At 11/1/07 18:56, Anonymous Anónimo said...

Eu já fiquei augadinha com essa receita.
Hei-de deixar aqui, se me deres licença, a receita do folar de Vale d'Ílhavo (não sei se já foi postada por alguém). Nas mãos certas faz augar muita gente desde que aprecie esse tipo de bolo. A pessoa de quem a herdei tinha dedo e paciência, porque é um bocado trabalhosa, como essa bola.

 
At 11/1/07 21:44, Blogger avental said...

Ponha, claro, Mirtilho. Esteja à vontade e, além disso, agradeço-lhe.

Suponho que esse folar seja parecido a uns que sabem a canela e que como todos os anos, de Aveiro.

 
At 12/1/07 00:00, Anonymous Anónimo said...

Avental, provavelmente estás a referir-te mesmo ao folar de Vale d'Ílhavo, porque Aveiro, infelizmente, não tem folar nenhum especial a não ser aquele que se encontra em qualquer pastelaria, mais ovos menos ovos.
Como este de que falo se vende em Aveiro por todo o lado, talvez haja tendência para lhe mudar a paternidade, mas o seu a seu dono.

 
At 12/1/07 02:41, Blogger avental said...

São daquelas injustiças a que não se pode fugir, Mirtilho. Mas, e a receita? :) A Páscoa ainda vem tão longe!

 
At 12/1/07 18:55, Anonymous Anónimo said...

FOLAR DE VALE d’ÍLHAVO

1kg de farinha
375 gr de açúcar
5 ovos
1 pacote pequeno de canela
100 gr de manteiga
40 gr de fermento de padeiro
1/2 chávena de água quente
1 pitada de sal

1. Desfaz-se o fermento com os dedos na quarta parte da farinha e depois amassa-se com água morna até fazer um bolo, que fica a levedar.

2. À parte mistura-se o resto da farinha com o açúcar e a canela.
Faz-se um buraco no meio e partem-se os ovos lá para dentro.

3. Amassam-se os ovos com as mãos e quando desfeitos junta-se-lhe a manteiga entretanto derretida em meia chávena de água quente com uma pitada de sal.
Começa a amassar-se com a farinha envolvente, aos poucos.

4. Forma-se uma bola, envolve-se em farinha e deixa-se levedar em lugar quente, embrulhada em mantas (de Inverno deixa-se levedar de um dia para o outro; de Verão, de manhã para a tarde. Se levedar demais, fazem-se buracos com os dedos para extrair o ar).

5. Com as mãos enfarinhadas moldam-se folares, faz-se uma cruz em cada e cozem no forno cerca de 1 hora.

6. Se os folares levarem ovos cozidos em cima, cobrem-se com correias feitas de massa tendida com as mãos (ter sempre farinha à mão para a massa não pegar).


Voila!

Espero que gostes, eu gosto muito, embora nunca o tenha feito.

Como a receita é muito antiga alguns destes processos, nomeadamente o manter a massa à temperatura ideal, estão ultrapassados.

 
At 21/1/07 21:30, Blogger avental said...

Mirtilho, obrigado de novo.Junto da Páscoa faço o folar segundo esta receita e dou-lhe a sua autoria.

 

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