sexta-feira, março 30, 2007

A culpa não foi do bacalhau à Brás

Este bacalhau à Brás deixou-me bastante arreliado. Não o prato em si, cujo modo de fazer fui buscar a O Livro de Pantagruel, receita n.º 743, pág. 179, volume I, 31.ª edição, mais um livro que deu aos portugueses muitos pratos tornados de família. É um livro de receitas honesto e fiável. Servi-me dele com receio de que o meu modo de confeccionar este bacalhau (a olho) desse bronca e me enchesse de trabalho.


Afinal o trabalho veio à mesma, porque não era o vulgar bacalhau à Brás que eu queria, mas o que saboreei num menu de degustação do Restaurante Casa Cástulo, em Galaroza, uma excelente cozinha criativa num lugar perdido e belo das terras andaluzas da D.O. Jabugo, a 50 km da fronteira de Elvas. Tratava-se de uma montagem em cilindro de bacalhau à Brás (sem salsa), macio e untuoso como é devido, encimado por um ovo na justa medida da face superior, impecável, feito na chapa, cuja gema, uma vez rompida, o tornou muito mais macio e untuoso do que já era, para grande surpresa minha. Foi isso que me propus fazer.

Limite de Galaroza (estudo), Seraphina Mosey, pastel, 1999.

Ora a causa da arrelia foi precisamente o ovo no topo, digamos a grande cereja amarga no cimo do bolo. Qui-lo escalfado, o que faço sempre com todos os quesitos, água quase sem ferver numa sertã, com 10% de vinagre de 6º de acidez, primeiro a clara, depois, com esta já meio coagulada, a gema no centro, exactidão que não pode deixar, neste instante, de me parecer bastante ridícula. Afinal não sou cozinheiro nem redactor de receitas em livro. Não sou nem nunca quis ser. Quem manda ao sapateiro tocar rabecão? Perdi assim dois ovos frescos. Depois tentei o ovo na chapa. Perdi mais dois desses. Nem via que a causa da estragação era querer moldá-los em círculo logo de início, na sertã e depois na chapa, com ajuda da forma que iria moldar o bacalhau. Ainda por cima, já os tinha feito assim redondos para esta sopa falhada, que afinal não repetirei. Acabei por só pôr a gema amornada, conforme se vê na imagem, decorando atabalhoadamente o prato. A súbita dislexia fez-me mesmo perder parte das imagens ao passá-las para o computador, com as quais ilustrava a confecção, como é meu uso.

O bacalhau, estava bom quando o provei do tacho, embora prefira o que faço, tão macio como este e mais saboroso. A diferença está em que estufo o bacalhau na cebola finíssima já cozida no azeite e ponho então o alho picado, além de mexer os ovos à parte, deixando-os cremosos e misturando-os no fim. O Pantagruel manda fritar, em separado, primeiro o alho no azeite, depois a batata palha, a seguir a cebola, e só então o bacalhau, reservando cada um destes elementos, e só no fim os juntando no tacho com os ovos em cru, batidos, o que obviamente o torna menos apurado. Não se tratava, porém, de fazer um bacalhau à Brás, mas sim de repetir o segundo ou terceiro prato daquele excelente menu de degustação. No final já nem me soube a nada.

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quarta-feira, março 28, 2007

Rodovalho grelhado com ovas de pescada e molho de Orio

Orio é uma povoação de Guiposcoa, com um pequeno porto de pesca, entre Zaraus e S.Sebastian, onde são reis o besugo e o rodovalho. Foi aí, no Bodegón José Mari, que saboreei pela primeira vez, e depois com alguma continuidade, o rodovalho na brasa e também o besugo, temperados com um molho tão simples quanto excelente, que aqui baptizo com o nome da pequena povoação basca. No entanto, é um molho, comum não só a Euskadi como, por adopção, a toda Espanha, com uma ou outra variação sempre em lá menor, como costumo dizer quando se mudam para pior as coisas que estavam bem.

O rodovalho é dos peixes de mar de que mais gosto, pela firmeza e sabor delicado da sua carne muito branca. Tive a sorte de encarar com uns quatro ou cinco num hiper, coisa bem rara neste país com coisas absurdas a mais. Estou a lembrar-me, que tendo nós tanto mar e tendo vivido tanto dele, se haja acabado praticamente com barcos e pescadores.

Enfim, umas horas antes do almoço, temperei o peixe de sal. Cozi, entretanto, em água com sal e salsa, meia dúzia de ovas de pescada, que escolhi entre as mais pequenas. Cozi também umas quantas batatas miúdas e deixei-as estar na água para não arrefecerem. Já enxugara cuidadosamente ambos os lados do rodovalho de toda a humidade e pincelara-o com azeite, sem deixar um mm2 de pele por cobrir. Aquecera a chapa de grelhar em lume médio, passando-lhe em toda a superfície um papel de cozinha embebido em azeite, e pus o peixão a grelhar mais ou menos 12 minutos de cada lado. Quando um dos lados ficou grelhado – ó trabalho dos trabalhos! –, virei o peixe com a ajuda de uma espátula e da mão livre. Nem me lembrei de tirar a foto da praxe.

Tinha já aquecido azeite com alho laminado e alourei nele as ovas. Porque não as fritei logo, perguntará alguém. Porque as ovas, já de si tão calóricas, embebem-se menos de azeite quando previamente cozidas.

Finalmente o molho: azeite mais que o julgado necessário, cinco ou seis dentes de alho laminados que levei, com o azeite, a alourar. Desliguei o bico e, com cuidado, acrescentei o sumo de um bom limão. Estava feito o molho de que tanto gosto e tudo pronto para montar os pratos, depois de ter aberto ao meio alguns tomates-cereja, que temperei com flor de sal. Cortei uns ramos de endro apenas para dar cor, alheio aos sabores escolhidos.

Fiz então os pratos como se vê na primeira imagem.

Resultado: o peixe estava no ponto exacto de cocção e parecia ter sido roubado ao mar há uma hora. As ovas alouradas ligavam muito bem com o rodovalho. O Quinta do Cardo branco de 2005 que bebi, fresco na acidez e na temperatura de serviço, com notas de lima e de limão, elegante e macio, com 12,5º, casava em funda harmonia com este prato já de si tão equilibrado. Foi então que veio a sobremesa da entrada abaixo, tão ou mais digna de finalizar um almoço destes. Só faltou foi um Romeo y Julieta, mas, à terceira tentativa, deixei o tabaco de vez. Das coisas de fumar, é já a única que me traz saudades.

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Dica esquecida no pudim de pão com café

Uma maneira rapidíssima de separar as gemas, útil sobretudo quando são muitas, e para acabar de vez com a falsa dança de galo selvagem enamorado, que as gemas parece fazerem de metade para metade da casca do próprio ovo, é partir os ovos e depor claras e gemas com cuidado numa vasilha de fundo redondo. Com cuidado, quer dizer, abrir os ovos junto à superfície onde os vai colocar. Se não tem confiança na sua frescura, já sabe: passe-os primeiro por uma tigela. Depois, com a ponta dos dedos em concha, ligeiramente separados, colhe-se gema a gema, apartando-as de cada vez da clara que trazem agarrada e que se escapa entre os dedos. É um ai e acaba-se com o tédio de andar a saltar com uma gema de casca para casca.

Vi este modo de separar as gesmas quando olhei os interiores de uma pastelaria em Tentúgal. Uma mulher colhia inúmeras gemas de uma grande vasilha, para fazerem o recheio dos muito celebrados pastéis daquela terra: bem superiores, e só parecidos à vista, são os de Vouzela, certamente mais antigos. Lembre-se: cada vez menos o mais famoso é o melhor.

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segunda-feira, março 26, 2007

Pudim de pão e café com gelatina de Drambuie e granizados de sumo de laranja e de framboesa

Há cerca de duas semanas saboreei um pudim de pão e café à sobremesa num restaurante de Rio Maior, e o que mais me atraiu nele foi a cor negra, já que o sabor a café tinha-se ido embora, imagino que durante a cozedura.

Puseram-se-me dois problemas para a sua consecução: um foi dar a mesma cor negra; outro, manter o aroma a café. Só sabia de receitas de pudim de pão com leite, com que obteria inevitavelmente a cor pardacenta de um galão.

Fui ao Google investigar e, além de um pudim copiado, com toda a lata, em não sei quantos sites sem se saber nada da publicação original, encontrei este, a que retirei, a raspa de limão, juntando 25 g de café solúvel sem cafeína, parte aplicado na calda, parte na massa de pudim, cujas instruções da receita também não segui: juntei à calda de açúcar já no ponto (pérola) mais ou menos metade do café solúvel, e deitei-a como dizem sobre o miolo de pão. Vi logo que não poderia desfazer o miolo, e então juntei os ovos. Já pude então, com a varinha mágica, triturar bem o pão até obter uma massa lisa.Foi aqui que adicionei o resto de café solúvel, na verdade em tentativas sucessivas até obter a cor que me pareceu bem. Só no fim, pela falta que ficou no frasco novo, é que soube da quantidade certa.

Como dizem na receita por que me orientei , passei com caramelo a forma para pudins em banho-maria, uma forma com cobertura em silicone, mas será o mesmo em teflon. Esteve 50 m a cozer em banho-maria num tacho, a que fui acrescentando água à medida que se evaporava. Como a receita referida dizia para desenformar o pudim em frio, esperei que arrefecesse totalmente. Saiu com grande dificuldade, batendo com a forma não no prato, mas no balcão de serviço. Saiu direitinho, como se vê na imagem, e depois passei-o para o prato de serviço com a ajuda de espátulas. Isto leva-me a pensar que, para a próxima vez, o desenformarei ainda morno, a forma untada com manteiga em vez de caramelo, e aplicarei menos 50 g de miolo de pão.

Pode ser servido sozinho, como sucedeu depois do cabrito da entrada abaixo, ou montar uma sobremesa com o pudim, com que ganhou bastante, tal como aconteceu com o sobejante depois de uma refeição de rodovalho sobre a qual ainda escreverei. Em ambos os casos o pudim melhora se for servido no dia seguinte.

Para compor a sobremesa, preparei uma gelatina, para a qual pus de molho em água fria 2 folhas dela incolor(6 g), durante 5 minutos, e, neste entretempo, aqueci no microondas 100 ml de Drambuie sem deixar que fervesse. Espremi bem as duas folhas de gelatina e misturei-as energicamente no licor aquecido. Pus esta calda no frigorífico, num recipiente de fundo largo, de maneira a conseguir uma altura de gelatina de cerca de 5 mm.

No dia seguinte, espremi o sumo de uma laranja e descongelei um pouco de framboesas, que esmaguei com açúcar a gosto e passei por um coador fino, com a ajuda de um pouco de água. Levei os sumos a granizar separadamente. Com ajuda de uma faca, cortei a gelatina numa malha de 5 mm de lado, e levantei-a com uma colher. Cortei uma fatia regular de pudim e pus os granizados juntos em copos de shot, primeiro o de sumo de laranja, depois o de framboesa, e montei os pratos como se vê na imagem do topo.

Deve beber-se o granizado primeiro, como se fosse um sorvete por si só, e depois ir saboreando a ligação perfeita do pudim de pão e café com a gelatina de Drambuie. É mais uma sobremesa de topo, dentro da relatividade dos gostos, entre as sobremesas que inaginei nestes 10 meses de blogue.

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domingo, março 25, 2007

Cabrito assado com mel de urze e alecrim


Tinha arranjado um bocado de cabrito e ontem andei de cá para lá com o dilema de o assar no forno ou de o grelhar na chapa, mas sempre com o fim de o fazer com mel e alecrim. Em boa hora a preguicite e também o bom senso me inclinaram para o forno.

Ao contrário do cabrito assado que normalmente faço, este não esteve tempo nenhum antes a tomar sabores. Partido aos bocados, esfreguei-o de imediato com sal, alecrim, discretamente pimenta preta do moinho. Sou cada vez mais de poucos temperos e não me tenho arrependido quando a matéria-prima é boa. Depois de massajar os bocados de cabrito com azeite, pu-los no tabuleiro do forno e levei-os a assar a 240ºC, com um nada de água no fundo.

Quando o vi louro, depois de o ter voltado uma vez, passei o cabrito para uma assadeira de pirex, Deglacei com um pouco de água (uns 150 ml) os restos do assado que tinham ficado agarrados ao tabuleiro, coei o molho obtido para uma caçarola, juntei-lhe umas pontas de alecrim e levei-o a reduzir um nada por fervura. Deitei um pouco desse molho sobre os pedaços de cabrito já na assadeira. Amornei 50 ml mel de urze no microondas para ficar mais líquido e passei meticulosamente os pedaços de cabrito por esse mel. Levei a assadeira ao forno, à mesma temperatura. É preciso vigiar para que o mel não se queime.

Enquanto isso, em lume muito forte, num tacho de fundo arredondado, à falta de wok, aqueci nele um fio de azeite, deitei as verduras já usadas num outro prato, que são óptimas, e fui-as mexendo para passarem por igual e, ainda um pouco firmes (menos que na cozinha chinesa), juntei-lhe umas três colheres de sopa de molho de cabrito. Deixei que se impregnassem e apaguei o lume.

Montei os pratos como se vê na imagem do topo e acompanhei com o Dão reserva da Quinta de Cabriz 2003, 13º, cor fechada, com aromas de fruta madura, ameixas pretas, cerejas também pretas, algo de compota, um arzinho de pinhal, taninos macios e um longo final a atestar a qualidade do vinho. Não sei dizer o que estaria melhor, se o cabrito, se o vinho. A carne de sabores delicados, sem desiquilíbrios, o rosmaninho, a ligeira doçura do mel, o sabor discreto do aipo das verduras, o vinho elegante e afirmativo, em plena pujança. Sei que faziam um casamento perfeito, dentro da imperfeição da vida humana, que é tudo ter de chegar ao fim.

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quinta-feira, março 22, 2007

Peixinhos do rio

Este é o alto Mondego, bem longe ainda da Figueira, vagaroso entre as terras de Fornos de Algodres, no coração da Beira Alta. Vim muitas vezes de propósito a este restaurante comer peixinhos do rio em escabeche, enquanto olhava as águas a passar como um tempo luminoso. Estava-se bem, longe do mundo, sempre numa mesa junto da janela. Mas veio a lei cega e acabou com os peixinhos, como (quase) acabou com o queijo da serra artesanal, está tudo em queijarias, e agora é mais o leite de ovelhas de Espanha do que o leite das churras portuguesas que entra nas coalhadas. A bem da higiene, com que tenho de concordar, mas afinal nem sempre a bem da qualidade. Não me parece aceitável e, menos ainda, inteligente fazerem-se leis com olhais de mula na cabeça, ou seja, que fitem só em frente, sem olhar para o lado.

Na berma, para trás, relegadas para o passado, que cada vez mais é a agonia da identidade de um povo, ficam coisas que dificilmente tornaremos a ver, os peixinhos, o queijo da serra como aquele que comia e que ainda vou arranjando clandestinamente, a aguardente bagaceira que agora se destila em alambiques escondidos, aguardente que tem um forte aroma a chá, sobre a qual costumo dizer, quando é da legítima, que só a troco, no mínimo, por um whisky de malte de 15 anos, se for bom, por uma aguardente velha da nossa que seja excelente, por um conhaque ainda melhor.

Há dias, tornei ao restaurante, quarenta quilómetros para lá, quarenta para cá. Em vez dos peixinhos a que ia e que soube então não haver mais, comi bacalhau assado e umas batatas a murro enormes, mas deliciosas, a nadar em azeite de muito boa qualidade, um modo dentro da lei de se iludir o casal antipático das garrafinhas. Um restaurante tosco? Um restaurante de peixinhos do rio longe de tudo.

Até os fiscais da ASAE haviam de lamber os beiços e, depois de os limparem civilizadamente com um guardanapo de papel, encantarem-se com o vinho branco em jarra da imagem, naquele meio-dia de Primavera temporã.

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domingo, março 18, 2007

Técnicas e escolhas para um arroz de borrego

Parece um arroz de todos os dias, cozinhado com a pressa de quem chega a casa, depois de um dia de trabalho. Foi para dar essa ideia que pus a imagem acima. É, no entanto, um arroz trabalhoso de fazer, de sabor complexo mas não com as complicações vulgares, baseadas em temperos, especiarias e matérias-primas de carácter aleatório, muito suave, sem nenhum dos sabores sobressair, exceptuando o do borrego e, mesmo este, de forma bastante discreta.

A que tipo cozinha pertencerá, não sendo pois da nossa quotidiana? Talvez ao da corrente Slow Food, penso agora, depois de ter sido o meu jantar de ontem. Um arroz de sabor português e, no entanto, mais que apenas isso.

Imaginado por mim há algum tempo e guardado na cabeça, fui buscar técnicas fora do país, uma originalmente francesa, outra valenciana. Do País Valenciano, veio o arroz e o modo da paelha; de França, o caldo, que isto de caldos, ou fundos, tem que se lhe diga, mais do que vem nos livros, meras receitas base e apenas teoria quando na prática não se vai mais além delas.

Fiz o caldo com modificações a partir do Larousse de la Cuisine, edição de 1997, página 308, modificações feitas nos seus componentes e na maneira de preparar a carne. É preciso adaptar o caldo ao fim a que se destina, e os fins são muitos. No Larousse, como carne, indicava rabo de boi, e eu apliquei vitela de estufar, e ainda chouriça de qualidade e um bom osso de presunto. Com a mudança da peça de vitela (novilho...), obtive um sabor muito menos acentuado a carne de vaca, tal como previ e queria. A introdução do presunto e da chouriça foi para dar um toque mais acentuadamente português ao caldo e ao arroz.

Levei as carnes ao lume, numa panela, cobertas de água, e deixei ferver um pouco, retirando a espuma, apenas na expectativa de me sobrar um pouco para um consomé, caso contrário dispensaria esse trabalho. Juntei à panela a cebola partida grosseiramente, dois dentes de alho esmagados como se vê na imagem, sobre a carne, alho francês e cenoura às rodelas, umas hastes de cebolinho que não foram fazer nada, um ramo de salsa, pimenta preta em grão e sal. Pus tudo na panela da carne, como disse, e tornei a cobrir de água. Deixei em lume vivo até levantar fervura, e depois baixei-o para o mínimo e ficou hora e meia a fervilhar, como o Larousse indica. Fui escumando o caldo. No fim, retiradas as carnes, que servirão possivelmente para croquetes, passei tudo no coador chinês, espremendo bem. Obtive 1,2 l de caldo, que sabia ir chegar e sobrar. O caldo prometia um bom arroz, tão saboroso estava. É evidente que não o desengordurei, seria uma asneira, perderia sabores do presunto e da chouriça.

Entretanto, colocara distribuidor de lume (paellero, ver imagem ao lado) no fogão, rigorosamente na horizontal, horizontalidade indispensável para o igual cozimento do arroz, achada e verificada com água na própria paellera, uma paellera pouco ortodoxa porque revestida a teflon. Aqueci bem nela azeite de conservar salpicão para, com o aroma do enchido com que o azeite está, reforçar o meu desejo de sabor português naquilo que, à primeira vista, pode parecer uma paelha, e que afinal é, mas portuguesa, e sempre um arroz de borrego lusitano.

Dourei no azeite, em fogo vivo, pequenos pedaços de falda e costela de borrego (850g), temperados com sal. Esperei, com impaciência, que o meu ajudante, nestas e noutras coisas, abrisse o saco de arroz Bomba que eu trouxera de um hiper de Espanha. Nunca tinha visto o seu grão, porque aparece sempre em embalagens que o escondem de todo. Espanto! Um arroz tão miúdo quanto a trinca, arroz que eu sabia ser o melhor para paelhas, por reter o sabor mais que qualquer outro, ficar solto embora húmido, e sair al dente com muito mais segurança que qualquer outro.

Juntei 1 copo e meio desse arroz (330 g) ao borrego já alourado e fritei-o até surgirem bastantes grãos opacos sem os dourar sequer. Logo a seguir adicionei quatro copos de caldo. Deitei 100 g de ervilhas descongeladas, sem mais nenhum legume ou verdura, ao contrário da paelha, juntei 2 rebentos de hortelã que sairiam a meio da cozedura, temperei a calda definitivamente de sal e deixei-a ferver, sobre o espalhador, com o lume sempre no máximo (pelo menos no fogão cá de casa, é indispensável que a calda ferva em toda a superfície da paellera), isto durante 14 minutos. Na embalagem do arroz aconselham apenas 12 minutos. Sucede que este burgo milenar está a cerca de 500 m de altitude, o que faz baixar a temperatura de ebulição da água em 2ºC e atrasar as cozeduras.

Tinha, entretanto, assado um pimento vermelho que, inicialmente, era para colocar com as ervilhas. Não o pus, por ir dar sem remédio um sabor andaluz ao prato, ainda que o tivesse assado para minorar o gosto. Em boa hora não o fiz, porque descaracterizava o prato. Esgotado o tempo de lume, retirei a paellera e coloquei as tiras de pimento em cima. Hoje não as teria colocado. Deram à apresentação um ar naïf e mais andaluz. Esperou fora do lume, não 5 minutos como reza a embalagem, mas mais de dez, a paellera coberta com folha de alumínio e uma toalha a abafá-la durante os cinco primeiros minutos.

Já na mesa, provei a medo. Tanto podia sair um fiasco igual ao de baixo, como algo fora de série. Mais um espanto! O arroz, que crescera muito, carregava todos os sabores com ele. Estava perfeito, al dente, solto e húmido como se vê na imagem imediatamente abaixo. Grande confusão ia na minha cabeça, Como carregaria os sabores assim tão completamente? Agarrados exteriormente ao grão, ou também no seu interior? Ainda agora não sei. Bastante à vontade para fazer qualquer tipo de arroz, tantos e tantas vezes os tenho feito, creio que este foi o melhor da minha vida. Divino!

Segredos? Estão todos aqui: o caldo de carne, o arroz (o nosso carolino fica a milhas), e o modo de o fazer: como uma paelha. Mas para fazer este arroz necessita primeiro de fazer paelha com todos os ss e rr, falo da técnica e dos utensílios, devendo usar uma paellera de ferro e não uma como a que usei. A minha legítima está cheia de ferrugem por causa da preguiça de a untar com óleo alimentar. Também o paellero é indispensável a quem não disponha de umas boas brasas e lume que se aguentem vivos sob a paellera. O arroz, talvez o arranje no Corte Inglês ou, de certeza, quando der um salto a Espanha. O mais está tudo aqui.

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quinta-feira, março 15, 2007

Como o Pepe Rápido, mas...

Como é que se pode inventar um prato? Imaginando e antevendo resultados. Só que às vezes as coisas correm mal e não saem. Disse às vezes. Se asneasse com frequência e transpirasse, como depois dos 400 m barreiras, para fazer um molho novo, ou propalasse aos quatro ventos gregos que transpirava para suscitar nos outros o reconhecimento de um valor que não possuía, há muito que tinha abandonado este passatempo, o fogão, as panelas, os utensílios, os termómetros, o medidor de pH, os banhos-maria, o sifão de espuma que não tenho, o kit de esferificação que hei-de ter, os livros de doces e de salgados que ninguém aqui em casa sabe quais e quantos são (quanto mais na blogosfera), enfim coisas da boa técnica, mais a ideia de pedir um forno a vapor ao Menino Jesus e a pouco virtuosa intenção de fazer uma colecta à porta da sé catedral do extinto império para ir jantar ao Eleven, ufa!

Tudo isto para dizer que falhei miseravelmente uma açorda de coentros com ovo e bacalhau, a que quis dar um arzito diferente.

Falhei, mas tornarei a ela. E como todos os falhanços vai para os Fiascos, rubrica na coluna à direita, que não me caem os parentes na lama. Aqui mostra-se tudo, não se publicará nada em papel (deste tema), e não se admite o plágio como o dicionário de Houaiss o define:

"(...) apresentação feita por alguém, como da sua própria autoria, de trabalho, obra intelectual, etc. produzido por outrem."

Finalmente, os erros: o ovo estava frio e disse ao meu ajudante da altura para o aquecer, era para ir um nada ao forno, foi parar a um tacho com água quente. Resultado, a gema ficou velada.

No intuito de homogeneizar com a

agua do caldo a massa de coentros passada no coador de rede fina, fiz uma ligeira embamata de farinha e azeite, a que juntei a água com os coentros, temperada com sal e alho. A embamata não só não homogeneizou a mistura, como a separou mais. Veremos como resolverei o problema da ligação. Com natas é que não. Açorda de coentros com natas só lembrava ao Diabo.

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sexta-feira, março 09, 2007

Ovo com tomate, uma receita com mais de 100 anos


Muitas das casas de nossos pais e avós tinham ou têm ainda pratos oriundos do livro de cozinha portuguesa de referência , que é o Tratado Completo de Cozinha e de Copa, de Carlos Bento da Maia, com primeira edição em 1904, pela Livraria Editora Guimarães & C.ª.

De casa de meus pais, que já vinha de meus avós, trouxe a desfazer-se de idade e uso essa longínqua edição. Acabei, mais tarde, por comprar a de 1995, já em 2.ª edição, publicada pela D. Quixote. Se ainda o não tiver, não desista de procurar o livro em livrarias e alfarrabistas: julgo que esteja esgotado.

Foi por ter visto um ovo com tomate no Rap’ó Tacho que me deu saudades deste outro, que já fiz uma série de vezes. Vem na página 337, e o molho de tomate, na página 320, da edição de 1995 do livro de Bento da Maia. Faço-o de cor e substituí o pão frito em manteiga por pão frito em óleo, não só para ficar mais estaladiço, como para não aportar mais sabores que os simples do molho e do ovo.



Quantidades:


Para um ovo: 1 tomate médio e ½ passado no ralador. Sal e pimenta preta do moinho q.b. um dente de alho pouco esmagado, meia colher de chá de açúcar, uma fatia de pão frita em óleo.

Leva-se ao lume a polpa de tomate temperada com o acima dito e deixa-se apurar em lume muito lento. Retira-se o alho e junta-se massa de tomate, até o molho ter a cor que lhe agrade. Deixa-se apurar um pouco mais e junta-se um gole de água.

Entretanto, escalfa-se um ovo bem fresco, isto para quem tiver galinhas ou então uma vizinha como eu. Coloca-se o ovo sobre a fatia de pão e depois o molho de tomate em cima.

O molho de tomate, assim confeccionado, sem estrugido, sem gordura nem cebola, torna-se muito delicado. É uma entrada perfeita.

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terça-feira, março 06, 2007

Uma pá de borrego da Catalunha # 1

Trouxe o assado da entrada abaixo de Torre Valentina, na província catalã de Girona. Estava em férias, ali onde o mar é único – todos os mares parecem únicos porque diferentes em cada lugar, quando ainda primordiais como esse Mediterrâneo.

Sentámo-nos numa esplanada para jantar, as mesas postas para isso mesmo. Fui olhando para o que os outros estavam a comer, comida internacional de Verão, muito mais rápida do que lenta. Veio o chefe de mesa com o seu bloco de notas, envergava um smoking, tomou conta das pedidos e, quando foi a minha vez, disse-lhe que para mim só mesmo uma coisa muito boa. Temos algo que não vem na ementa, não se preocupe, vai gostar. E trouxeram-me uma pá de cordeiro assada no forno, colocada inteira sobre feijão branco cozido, pequeno e muito macio, um tomate grelhado ao lado, o molho simples e leve do assado sobre os feijões. Uma delícia suprema.

A cozinha catalã tem destas tão inesperadas quanto perfeitas ligações, plenas de equilíbrio e rusticidade. É para mim, com a cozinha do País Basco, a melhor das nações de Espanha, ainda que seja injusto não lembrar a galega, irmã da nossa nortenha, e a castelhana, esta de uma simplicidade austera em que a matéria-prima de pastos de erva e de bolota tem lugar de rei.

Falo de cozinhas regionais. Porque em Espanha também floresce com grande pujança a chamada cozinha de autor, quantas vezes baseada em desmontagens da cozinha tradicional. Infelizmente, estamos bem longe de nuestros hermanos em turismo e, muito mais ainda, no subsector da restauração.

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